O que é filiação socioafetiva? Pai é quem cria?
Não somente no Brasil, mas em vários países ao redor do mundo os Tribunais Superiores ganham destaque no ordenamento jurídico ao reconhecer direitos não previstos legalmente e concretizar valores constitucionais.
O protagonismo do Poder Judiciário decorre da insuficiência da legislação de prever todas as possibilidades sociais dada a diferença de velocidade da vida real e do procedimento legislativo.
Neste contexto, o reconhecimento da filiação socioafetiva não é fundado em previsão legal, mas sim em uma construção doutrinária e jurisprudencial baseada na necessidade de proteção da relação fundada no amor e por considerar a filiação elemento fundamental na formação da identidade da pessoa.
Trata-se de dar efetividade jurídica à máxima popular de que “pai é quem cria”, ou seja, reconhece a filiação mesmo quando ausente vínculo biológico, o que compreende todos os direitos inerentes à relação, sejam patrimoniais, como no caso de pensão alimentícia e herança, sejam extrapatrimoniais, como afeto e educação. Mas a filiação socioafetiva não está adstrita ao pai, de modo que pode também ser reconhecida a maternidade socioafetiva caso preenchidos os requisitos jurisprudenciais.
Esta efetividade traz algumas consequências jurídicas importantes, das quais é possível destacar algumas.
Registrei e descobri, por exame de DNA, que não sou o pai. Posso anular o registro?
O reconhecimento de filho é ato jurídico irrevogável e irretratável, de modo que o simples arrependimento posterior não é motivo suficiente para a nulidade do registro.
A alteração do registro voluntário é admitida apenas excepcionalmente e desde que comprovada a existência de vício de consentimento (erro, dolo, coação, simulação ou fraude).
O Poder Judiciário reconhece a existência de vício de consentimento (erro substancial) quando constatada, por perícia genética (DNA), a inexistência de vínculo biológico entre pai e filho gerado e registrado na constância da relação amorosa.
Entretanto, não basta a mera existência de erro substancial no momento do registro. É necessária, também, a inexistência de vínculo afetivo entre o pai e o filho. Desta forma, se o pai registrou o filho induzido a erro pela mãe, o vínculo não será desfeito se houver relação afetuosa entre eles, o que ocorre quando o filho o reconhece como seu pai, por exemplo.
É possível a mesma criança ter dois pais simultaneamente ou uma paternidade (socioafetiva ou biológica) se sobrepõe à outra?
O mesmo questionamento pode ser desdobrado em outros dois:
– Se o pai biológico não tem relação com o filho e é reconhecida a filiação socioafetiva, o pai biológico é excluído?
– Se o pai socioafetivo descobre, por exame de DNA, que não é pai biológico, a descoberta do pai biológico afasta a paternidade socioafetiva?
Estas foram questões que geraram grande repercussão jurídica e coube ao STF, ao julgar o Recurso Extraordinário nº 898.060, pacificar o entendimento e fixar a seguinte tese jurídica:
“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Consequência da tese fixada é que não há prevalência de uma paternidade (ou maternidade) sobre a outra, ou seja, o vínculo socioafetivo e o biológico encontram-se no mesmo grau hierárquico e podem ser reconhecidos concomitantemente – o fenômeno da multiparentalidade. Desta forma, quem cria é pai, mas o pai que não cria também o é, com todos os direitos e deveres inerentes ao vínculo.
Não sou o pai biológico mas quero reconhecer a criança que criei como filho. Devo ingressar na Justiça?
Não há necessidade. Havendo consenso, não é necessária declaração judicial da filiação socioafetiva.
É possível o reconhecimento de forma extrajudicial, diretamente no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais, bastando a apresentação de provas da relação, a manifestação de vontade das partes e desde que cumpridos alguns requisitos legais (o pretenso pai ou mãe deve ter mais de 18 anos, não pode ser irmão nem ascendente do reconhecido, a diferença de idade mínima de 16 anos, idade mínima do reconhecido de 12 anos, dentre outros)
Ao final, serão incluídos os dados dos ascendentes socioafetivos no registro do filho reconhecido sem que sejam excluídos os ascendentes biológicos já constantes.
Quais os direitos e deveres que decorrem do reconhecimento da filiação socioafetiva?
Exatamente os mesmos da filiação biológica (como pensão alimentícia, direitos sucessórios, pensão junto ao INSS, etc.), pois inexiste hierarquia entre elas.